sábado, 29 de setembro de 2012

“FELIZES OS QUE CREEM, SEM TEREM VISTO.”[1]


Simone dos Santos Borges[2]

O filme “O Corpo” (The Body), dirigido por Jonas McCord e estrelado por Antonio Bandeiras e Olivia Williams, lançado no ano de 2001, traz a tona uma discussão sobre religião (pensando esta enquanto uma instituição dotada de dogmas e regras a serem seguidas), fé (manifestação da vontade do indivíduo sobre o fenômeno sobrenatural e para este sagrado, portanto inconteste), política e identificação com o patrimônio cultural construído e difundido pela tradição através dos séculos.

A partir da descoberta arqueológica de um corpo crucificado ao estilo romano datado, aproximadamente, do ano de 32 d.C. em Jerusalém, cientistas e religiosos travam uma batalha sobre as questões que envolvem o maior milagre do cristianismo, para os fiéis dessa religião: a ressurreição de Jesus Cristo.

O fato do filme se passar em Jerusalém nos permite refletir sobre a importância desta cidade para as três grandes religiões, denominadas de reveladas, Islamismo, Judaísmo e Cristianismo. Uma cidade Santa, para ambos os grupos religioso, e também, local que suscita a emergência do poder, da eminência de um Estado Teocrático, e da afirmação da predilescência política, de uma das três grandes religiões no cenário internacional, do ponto de vista da revelação da verdade sobre a fé, é pano de fundo neste filme.

Destruir ou não a fé cristã, representada no filme pela sua vertente católica, é a discussão central, para a Igreja Cristã, nunca houve e nunca haverá um corpo, pois tradições são criadas, recriadas e desaparecem de acordo com os desejos e ansiedades sociais daqueles (as) que as criam.

 A instituição e a fé se confundem diversas vezes nessa representação fílmica, para as personagens que representam as instâncias do poder político-religioso:
 “isto não vai ser o fim do Cristianismo ou da Igreja Católica... a religião não se baseia num sistema racional de provas, sobrevive pela necessidade humana. Se apresentarmos provas de que Cristo não ressuscitou, os que acreditam que sim, não acreditaram em nós. Alguns podem desaparecer, mas sabes que mais? Acho que o Cristianismo vai sobreviver.”
Tal afirmação, apresentada no longa aqui analisado, acredito ser colocada desta maneira, pelo fato do fenômeno da fé, por mais que beba da fonte institucionalizada, ser algo inerente as necessidades do individuo, que por vezes perpassa as instâncias coletivas.

Assim, para o fiel não há necessidade de visualizar as implicações epistemológicas que envolvem a ressurreição de Cristo, cabe a ele apenas entender que este intercede por ele (a) nas horas da necessidade, se não for nessa vida, será em outra. As pessoas precisam de curas, esperanças, milagres, respostas, etc. por isso, buscam as religiões. Que exercem este papel de conforto de maneira moral, lícita e aceitável por todos.

Outro ponto relevante é a discussão que se forma em torno da bíblia, a própria ciência a admitiu como um revelador da verdade, em todo filme, assim como na nossa vida cotidiana a prova da existência de Cristo se dá pelas escrituras dos evangelhos, tal como só temos conhecimento de Sócrates através de Platão. Muitos dos que se dizem cientistas negariam de pronto a veracidade das informações ali contidas, mas para os historiadores da antiguidade é um livro que contém, informações sobre a fundação dos Estados, técnicas de agricultura, comércio, pecuária, enfim, informações sobre o processo de civilizatório da humanidade, sobre as invenções mais remotas. Portanto, válido e justo, tomar como premissa as informações ali contidas sobre a vida e morte, período e época em este viveu.

Assim, cabe encerrar esse debate com as mesmas reflexões que o pe. Gutierrez (personagem principal) chega ao final desse belíssimo longa metragem:

  • Ter o Estado de Israel envolvido em algo tão potencialmente perigoso para a Fé Cristã poderia ter sérias repercussões para nós (discurso das personagens palestinas).
  • Este não é o corpo de Cristo (discurso da igreja cristã católica).
  • Quando o Vaticano reconhecer uma Jerusalém una, como capital de Israel... as ossadas serão libertadas (discurso das personagens judias).
  • Deus não tem lugar na política (Pe. Gutierrez).
  • Cristo disse que a verdade liberta. A verdade libertá-lo-á, Matt (discurso da ciência).





[1] João Cap. 19, Vs. 29
[2]Especialista em História da Bahia, possuí graduação em História, é graduanda em Ciências Sociais, integrante do Núcleo de Pesquisa em Estudos Culturais, é professora da educação básica da rede particular de ensino em Salvador, e atua como bolsista PIBIC, sob orientação da Profª Drª Paula Barreto, do projeto de pesquisa "Mecanismos de desigualdade adscritiva, cultura e ensino superior no Brasil: os casos da Universidade Federal da Bahia e da UNIFACS” na UFBA.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ELEIÇÕES E INSTITUIÇÕES: EFEITO CASCATA


Por Marcelo Bloizi Iglesias

             Nesse ano de 2012, o Jogo do Bicho comemora seus 120 anos de existência. No início do período republicano o jardim zoológico, espaço de divertimento criado na década anterior no bairro de Vila Isabel na então capital do Império, passava por uma crise pelo fato de o seu administrador, o Barão de Drummond, não tirar lucros de tal empreendimento. Para tanto, conseguiu uma licença para a exploração de uma loteria dentro do seu negócio, e essa daria mais certo como empresa do que a própria atividade fim que fora o zoológico.

            Fato é que tal divertimento chegou a Salvador ainda na última década do século XIX como revelam notícias de periódicos de 1899, e como no Rio de Janeiro, sofreu com a perseguição durante (praticamente) toda a sua existência. Os ideais positivistas eram a ideologia predominante na sociedade oitocentista brasileira, e de forma alguma a população pobre, predominantemente negra e/ou de classes subalternas poderia se acostumar à dependência da sorte no jogo para ganhar a vida. A educação para o trabalho era a tônica daquela sociedade e nesse diapasão o Jogo do Bicho não durou muito tempo na legalidade, entre sua liberação e repentino sucesso até a sua perseguição houve um intervalo de apenas três anos.

            Durante toda a sua história, o Jogo do Bicho ganhou muitos simpatizantes, sendo lembrado em diversos momentos importantes de nosso país no século passado como uma representação da cultura popular e até questionado entre alguns intelectuais se não faria parte do nosso folclore. A figura do bicheiro, associada à do malandro, apareceu no cinema, nas novelas, no teatro, na música, na literatura sempre com uma construção em torno dos espaços populares da sociedade. Interessante como se forjam imagens e são criadas as representações numa coletividade. Todavia, estão sendo desconstruídas atualmente com o caso “Cachoeira” e o efeito cascata (com o perdão do trocadilho) sobre o Congresso Nacional, os partidos políticos, a polícia, grandes conglomerados de empresas nas quais o “manda-chuva” era envolvido, revelam o poder das instituições; e que Teoria da Conspiração é fato para os ingênuos que não querem enxergar que a falcatrua é geral no nosso país.

            Remeto nesse momento à Foucault e a maneira como ele interpreta o poder das instituições numa sociedade, e o Jogo do Bicho se fortaleceu em seus 120 anos se configurando como mais uma instituição, com normas próprias, com significância social e econômica na malha urbana das grandes metrópoles brasileiras. Um poder político muito grande está nas mãos dos bicheiros. O advento da Paratodos na década de 1980 padronizou a empresa em âmbito nacional, fazendo os banqueiros do jogo entrarem no rol dos bandidos de colarinho branco, mas ainda com o preconceito atinente à prática empresarial então tipificada como contravenção, já agora como crime em razão da inserção do Jogo do Bicho ser considerado lavagem de dinheiro.

            Hoje nos vemos estupefatos com as notícias do envolvimento do Congresso Nacional com os contraventores e troca de influências, favores e mesadas recíprocas. Não é de se assombrar, sabemos que o Congresso Nacional é um jogo de interesses das instituições, bem como os ministérios, a Câmara dos Deputados, a Câmara dos Vereadores, as secretarias de governo e municípios. Lembro ainda que além dos julgamentos do mensalão e do caso Cachoeira, estamos em ano de eleição e as mesmas instituições estão bancando campanhas milionárias (que todos sabemos) para serem favorecidas, e se a mídia quiser noticiarão as fraudes e crimes que essas cometerão nos próximos anos. Então, nas eleições 2012 façam suas apostas, pois as instituições já fizeram as suas...



Referências:
BRASIL. Lei das Contravenções Penais. 1941;
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder/ Michel Foucault; organização e tradução de Roberto Machado – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979;
MAGALHÃES, Felipe. Ganhou, Leva!: o jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960)/ Felipe Magalhães – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O DESEJO RIZOMÁTICO EM NELSON RODRIGUES


 Por Mayana Soares [1]

“-Eu não sou culpada, Carlinhos, eu juro, é mais forte do que eu – De fato, havia no mais íntimo de sua alma uma inocência infinita”[2]. Nas obras de Nelson Rodrigues o que estava sempre na pauta do dia era o desejo. Sempre o desejo. O desejo rodrigueano não se limita a satisfação moral nem ao prazer, posto que é fluxo, processo, movimento e, por isso, rizomático, sem começo nem fim, apenas meio; sem centro, sem partida nem chegada, apenas fruição. O desejo, como rizoma, é a potência necessária para a libertação sexual e de todas as formas de fascismos. 


Sendo assim, as antigas formas binárias e rígidas da encarnação do desejo, a partir dos modelos socialmente aceitáveis (ou não) pela sociedade brasileira de meados do século XX, são amplamente questionadas na literatura de Nelson Rodrigues. “Santa” x “Leviana”, “Homem-Macho” x “Maricas” são algumas das territorialidades que foram estremecidas em suas tramas, valendo-se da ambivalência para confrontar padrões morais e (re)criar novas linhas de fugas.


Em uma entrevista cedida a Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues sentencia: “A adúltera é a mais pura de todas as mulheres porque está salva do desejo que apodrecia nela”. O desejo, como potência criadora, desterritorializa o estigma e desloca a “adúltera” para além do universo das convenções e da falência do desejo.

Este posicionamento do autor pode ser visto em muitas de suas obras. Em uma das crônicas da coluna A vida como ela é..., “O homem que não conhece o amor”, temos a descrição de um homem que, após ter perdido sua esposa “casta” e “de honra inabalável” descobre o amor, o impulso e a vitalidade com Neusa, mulher independente e infiel, que lhe descortina as possibilidades do desejo, e que, principalmente, não se limita nem se poda.Outra importante crônica é “A esbofeteada”. Nesta obra, Silene, a namoradinha desenhada a ser “santa”, implora ao namorado por uma tapa e seu desejo não é limitado pela moral da época. Apanhar do namorado era seu ímpeto. Por esta tapa, ela se redesenha, transita entre os mundos “da santidade” e “da perdição”, busca incessantemente linhas de fuga, produzindo novas rotas de escape.

Por fim, “Dama do Lotação”, obra rodrigueana amplamente divulgada e disseminada por outras mídias. Nesta, encontramos o desejo que se ramifica pelos lotações cariocas. Solange, a esposa “casta”, é descoberta por seu marido. Este, estupefato, ouve o relato de Solange de suas saídas à tarde para pegar o lotação e se entregar ao primeiro homem que encontrar. O marido não aguenta tal humilhação e decide morrer para o mundo. Solange, como uma boa esposa, vela o marido toda noite e, todas as tardes, retorna ao lotação e ao fluxo do seu desejo.

Este ano comemoramos o centenário de Nelson Rodrigues, e nada mais justo do que homenagear a genialidade, a acidez e o legado literário deixado por este autor, que nos permitiu, e ainda nos permitem, viajar e nos desterritorializar. Independente das opiniões diversas, e por vezes, contrárias, acerca de sua obra, este escritor propõe uma cartografia do desejo, cujas conexões permitem múltiplos contatos e encontros. Como poucos escritores brasileiros, conseguiu expressar em sua arte tensões sociais e familiares, e discutir temas considerados “tabus” ou marginalizados de maneira forte, pungente, urgente, dramática, visceral e necessária.





[1] Especialista em Estudos Culturais, História e Linguagens. Possui graduação em Letras com Língua Espanhola. Atualmente, é professora, técnica educacional, pesquisadora no Núcleo de Pesquisa Estudos Culturais (NPEC) e participa do grupo de pesquisa Cultura e Sociedade (CUS). myrs_84@hotmail.com.
[2] Este trecho corresponde um fala da conhecida crônica rodrigueana Dama do lotação, proferida pela personagem Solange, uma das crônicas televisionadas em A vida como ela é, de 1996, media-metragem, encarnada pela atriz Maitê Proença.